terça-feira, 1 de março de 2011

A morte do trovador

Criei o conto abaixo especialmente para a antologia do próximo FestiPoa Literária, que ocorrerá entre final de abril e início de maio, em Porto Alegre. A maior parte do texto eu escrevi quando estava hospedado em um hotel em Assunção, Paraguai, no início da semana passada. A história baseia-se num fato real ocorrido em frente ao Theatro São Pedro, em 2 de setembro de 2009. O escritor e editor Beto Frizero, que presenciou a cena, fez uma tocante descrição desse episódio. Ela pode ser lida aqui. Quem estiver atrás de informações, pode ler esta notícia esclarecendo o que o ocorreu. Esse foi o fato inspirador da narrativa, que naturalmente não se atém à mera realidade.


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A morte do trovador

As situações mais comoventes da vida ocorrem no teatro. A realidade apenas choca, não nos emociona.

Isso tudo penso eu agora, sentado na tua frente, racionalizando acontecimentos da minha infância. Naquele dia em que mamãe e papai me levaram à ópera, eu não pensava assim.

Lembro muito bem. Era estréia de Il trovatore. A fila era imensa e, no longo tempo em que nela aguardávamos, eu observava eufórico a vida ao meu redor. Tudo era novo aos meus olhos. Casais de braços dados em aparente harmonia (hoje sei que era apenas “aparente”), moças em vestidos de verão trocando olhares com jovens universitários, crianças correndo sem direção... Havia também o pipoqueiro na esquina, com seu avental engordurado, a gritar, em dupla função, o preço dos últimos ingressos. Eu estava atento a cada detalhe, estava em meio a uma nuvem de novas sensações. Ainda hoje recordo o milho esquentando no óleo, um aquecimento lento seguido de súbita explosão: então o grão se tornava outra coisa, branca, quente, gostosa.

Isso tudo, repito, penso hoje, analisando os fatos aqui na tua frente. Na época só me interessava o movimento, a vida, a estreia. A pipoca.

Bati palmas quando o porteiro autorizou nossa entrada. A multidão avançava devagar. Para mim, cada passo era um terreno conquistado na jornada rumo a um território inexplorado. Encontramos nosso assento. Soou o primeiro sinal, depois o segundo e o terceiro. Abriu o pano.

Aquela foi uma noite inesquecível. Se eu fechar os olhos agora, ainda posso ver os ferreiros reunidos no acampamento cigano nas montanhas de Biscaia, posso ouvir suas marteladas enquanto cantam em coro “Chi del gitano i giorni abbella? Chi del gitano i giorni abbella...” Às vezes me surpreendo de olhos fechados em filas ou salas de espera, mexendo as mãos como se estivesse a reger os músicos. Como esquecer os cenários, como esquecer a música de Verdi ditando o tom dramático de cada cena! E o que dizer da cigana cantando deitada! Hoje sei da dificuldade de se cantar nessa posição, conheço a técnica, os detalhes, mas naquela época eu apenas vibrava com a ópera como se eu fosse a corda de um dos violinos. E o enredo! Como não se deixar envolver com a disputa entre o Conde e o trovador Manrico pelo amor de Leonora! E como é terrível a revelação feita pela cigana Azucena, revelação aliás que desencadeia todo o enredo trágico da história. Como é terrível!

Sou capaz de recordar mesmo agora cada detalhe de cada cena de cada um dos quatro atos. Mas a lembrança mais vívida é do final: o assassinato de Manrico. Essa foi a primeira morte da minha vida. Quando os soldados da guarda o seguraram, um de cada lado, e a espada do Conde atravessou-o no peito; quando Manrico arregalou a boca e começou a dobrar os joelhos, a vida lentamente deixando seu corpo, ao mesmo tempo em que o Conde descobria, através da cigana, que matara o próprio irmão; quando tudo isso aconteceu, senti como se fosse eu ali sendo apunhalado no palco. Pudera, naqueles quatro atos, eu havia me tornado amigo de Manrico, em poucas horas ele passara de um completo estranho para uma pessoa que eu reconhecia como um ente querido, alguém que partilhou sua intimidade comigo. Sim, aquela espada atravessou o meu peito. Sofri, ah, como eu sofri com a morte de Manrico! Nunca antes eu havia presenciado a morte de um homem.

Acho que a ferida até hoje não cicatrizou. Principalmente por causa do que ocorreu depois.

Mamãe e papai também ficaram eufóricos com a ópera. Gostaram tanto que, para o meu deleite, decidimos voltar na segunda noite. Dessa vez, em função da boa repercussão da estreia, havia muito mais gente. Uma ameaça de tumulto flutuava no ar, indo e voltando a todo momento. Estávamos todos espremidos na fila. Lembro que, de tempos em tempos, o pipoqueiro gritava:

— Últimos ingressos! Aqui comigo, os últimos!

Aos cochichos, as pessoas comentavam a insanidade de se vender mais ingressos. Como fazer para colocar toda essa gente lá dentro? De fato, havia muito mais pessoas do que a capacidade da casa, tanto que a direção do teatro liberou a entrada de apenas parte do público. O resto esperava lá fora, enquanto se acrescentavam cadeiras nas laterais.

Na rua, a fila não parava de crescer. Enquanto esperávamos, eu me punha a olhar em volta. Tudo era diferente no segundo dia. Os casais estavam em silêncio, os pais demonstravam impaciência e, como naquele calor até mesmo os vestidos das moças ficavam suados nas costas, ninguém flertava.

Lá pelas tantas vi se aproximar, vindo de uma rua adjacente, um homem todo encasacado, roupas de couro inclusive, as mãos dentro da jaqueta. Fiquei acompanhando seu movimento pela rua. Ele me parecia tão deslocado com aquela vestimenta que, em minha fantasia, comecei a imaginá-lo como um personagem da ópera. Na minha cabeça, vi-o correr até a entrada do teatro, sacar uma espada que trazia escondida na jaqueta de couro e, com voz de tenor, exigir que as portas fossem abertas e o acesso liberado. Após uma brava luta de espadas, ele teria seu êxito. Cantando, claro, e com música de orquestra ao fundo.

Fui desperto do devaneio por um súbito agito. Abriu-se um túnel em meio à multidão. O homem avançou no vazio com passos decididos. Agora ele trazia uma das mãos fora da jaqueta. Essa mão segurava um revólver.

O pipoqueiro estava de costas, distraído em seu labor. Não percebeu nada. O homem de jaqueta encostou-lhe o cano da arma nas costas. Sussurrou algo. Atirou. Saiu em disparada.

O mais estranho eu só reparei depois: ninguém escutou o barulho do tiro, porque exatamente no mesmo instante tocou o primeiro sinal da ópera. Não houve tempo para mais nada. O porteiro liberou a entrada, e os que vinham atrás de nós nos empurraram para adiante. Ainda consegui lançar um olhar para trás e vi que um pequeno grupo de desistentes da ópera fazia um círculo em redor do pipoqueiro. Ele jazia estirado no chão.

Dessa vez, não prestei atenção na música, nem no cenário, nos personagens ou no enredo. Só pensava no corpo do pipoqueiro lá fora. Repassava a todo momento em minha cabeça o instante da sua morte, como que para confirmar que era real o que eu presenciara. Um único tiro, apenas um tiro seco. E então a queda. O homem que atirou fugiu tão rápido quanto veio, deixando inexplicada aquela morte. Já o pipoqueiro morreu sem técnica, sem marcação, sem nenhuma deixa nem trilha ao fundo. Morreu de improviso. Friamente, sem emoção.

É como eu disse: as situações mais comoventes ocorrem no teatro. A vida apenas choca, não nos emociona.

Ok, ok. Sei que nosso tempo está acabando. Podemos continuar falando sobre isso na próxima sessão. Bem, até logo.