sexta-feira, 10 de junho de 2011

Lançando Sá-Carneirinhos

O senhor Sá-Carneiro

Livro recém-lançado em Portugal revela detalhes inusitados da vida do escritor.

Da Redação

Lisboa, maio de 2011. Acaba de sair a biografia não-autorizada de Mário de Sá-Carneiro, escrita pelo jornalista Guilherme de Santa-Rita Neto, autodenominado Santa-Rita Repórter. Para os desavisados: o autor de Contando sá-carneirinhos: a história do menino que pôs a si mesmo para dormir é neto de Santa-Rita Pintor, ícone do movimento futurista em Portugal. Santa-Rita Pintor e Sá-Carneiro eram “inimigos íntimos”, como o próprio Sá-Carneiro descreveu nas suas famosas cartas para Fernando Pessoa. Com isso ele queria dizer que havia uma ligação especial entre os dois, que não era nem amizade nem mero desprezo. De fato, Sá-Carneiro reclama de Santa-Rita Pintor em muitas cartas, mas não deixa também de conviver com ele. Havia um algo mais nessa relação.

Santa-Rita Repórter não admite ter escrito a biografia apenas como vingança, mas afirma: “Sá-Carneiro pintou para o mundo uma imagem do meu avô que não é verdadeira.” E completa: “Nesse sentido, Sá-Carneiro é pior pintor que meu avô.” No livro, Santa-Rita Repórter descreve um Sá-Carneiro desconhecido do público familiarizado com sua obra – inclusive em tópicos deveras polêmicos. “Tudo que está ali é verdade e demandou extensa pesquisa”, garante o jornalista.

A seguir, um resumo do principal conteúdo da obra.


Sabe-se que Sá-Carneiro passou por grandes dificuldades financeiras, o que inclusive o teria precipitado para o precoce suicídio em 26 de abril de 1916. O que não se sabe é de que forma ele buscava conseguir dinheiro. Segundo consta no livro de Santa-Rita Repórter, no início de 1914 Sá-Carneiro chegou a pedir dinheiro aos Correios de Portugal. “O bisneto de um funcionário me mostrou uma carta enviada por Sá-Carneiro para o gerente de uma agência em Lisboa”, conta o autor. Na carta, Sá-Carneiro teria dito que estava escrevendo um livro de cartas e que para isso pedia auxílio financeiro da instituição, a título de patrocínio. Foi nessa época que Sá-Carneiro escreveu a Fernando Pessoa comentando a possibilidade de a sua correspondência vir a lume décadas depois.

O patrocínio não foi aprovado. Coincidência ou não, a partir daí Sá-Carneiro passa a reclamar constantemente nas cartas do atraso no serviço dos Correios.


Sá-Carneiro fez análise! Sim. Ou pelo menos é o que diz o autor da biografia. Segundo Santa-Rita Repórter, no quarto de hotel em que Sá-Carneiro se suicidou foi encontrada uma agenda na qual aparecem marcações semanais sob o signo “sessão hoje – não esqueça!!!”. Surpreendentemente, essas marcações se repetem inúmeras vezes, inclusive no mesmo dia. A recém-publicada biografia de Sá-Carneiro traz um suposto fac-símile de algumas páginas da agenda, onde aparecem esses lembretes junto a uma série de setas e rabiscos. Ali se pode constatar, por exemplo, a incidência intermitente de frases como: “meu pai é meu herói”, “falar sobre o quanto eu gosto da mulher do meu pai”, “hoje acordei futurista, mas vou dormir saudosista” e “Fernando Pessoa não responde minhas cartas: não quero mais ser amigo dele”.

E quem seria o analista? Isso não se sabe, pois não há a citação de nenhum nome, a não ser o das pessoas que aparecem na correspondência. Santa-Rita Repórter aventa a possibilidade de que Sá-Carneiro fazia análise em si mesmo, escrevendo os conteúdos terapêuticos na agenda. Segunda essa teoria, Sá-Carneiro anotava o horário por mero deboche. No entanto, no criado-mudo do quarto do hotel foram encontrados alguns frascos de anti-ansiolítico. O que levanta a questão: como ele poderia ter conseguido o remédio sem receita?


Os hábitos esportivos do escritor. Segundo Santa-Rita Repórter, Sá-Carneiro caminhava diariamente, duas vezes na parte da manhã, e outras três à tarde. A informação não é confirmada; antes foi deduzida por uma história que circula até hoje na agência dos Correios em Paris na qual Sá-Carneiro buscava a correspondência. Fala-se por lá que, entre 1912 e 1916, em vários momentos do dia os funcionários viam Sá-Carneiro passando diante da porta. Depois de certo tempo, chegou-se à absurda conclusão de que Sá-Carneiro fazia suas caminhadas andando em volta da quadra da agência. “Quando chegava o carro do serviço postal, ele parava ao lado dos carregadores para fumar um cigarro e espiar os pacotes”, diz Santa-Rita Repórter. Ainda hoje, na mesma agência em Paris, há quem diga que o fantasma de Sá-Carneiro aparece à noite para bagunçar as cartas.


Um dos maiores mistérios envolvendo a morte de Sá-Carneiro diz respeito à identidade da mulher com quem ele se relacionava aos 25 anos de idade, nos momentos finais da sua vida. Em carta de abril de 1916, Sá-Carneiro diz que essa mulher é uma personagem saída da sua obra literária para a realidade. Sinal de que seria uma mulher imaginária? Não é o que diz Santa-Rita Repórter. Segundo ele, uma carta apócrifa para o amigo José Araújo deixa claro que se trata de uma mulher de carne e osso. Ou melhor: plástico e ar. E orifícios.


O grande mérito de Santa-Rita Repórter é não se ater à pesquisa histórica. Na biografia, ele se preocupou também em entrevistar especialistas de diferentes ramos de conhecimento para tentar descobrir, apenas através da análise da correspondência com Fernando Pessoa, porque Sá-Carneiro se matou. Um especialista na rede hoteleira de Paris afirma que o caso de Sá-Carneiro não era exceção, e que qualquer pessoa que se hospedasse no Hôtel de Nice em 1916 corria risco de suicídio. “Até hoje é um hotel que eu particularmente não recomendo”, diz.

Já um especialista em informática trouxe um motivo inusitado: “o que matou o Sá-Carneiro foi o email!” Ele acredita que Sá-Carneiro teve uma epifania naquele quarto de hotel, quando constatou que no futuro as mensagens seriam instantâneas, acabando com os longos períodos de espera. Mas não seria essa uma invenção boa para alguém tão ansioso? Na verdade, não. Para responder melhor, o especialista lembra que Sá-Carneiro dizia ter saudade do que ele ainda iria viver. “Quando ele pensou na ideia do email, era como se ele já tivesse experienciado a era da internet”, diz. Ele acredita que, na cabeça do Sá-Carneiro, a era da internet acabaria com seu maior prazer – a espera. “Se ele não fosse tão apressado, talvez pudesse prever que a maior parte dos servidores seria mais lenta do que se imagina”, afirma.


O livro encerra com uma hipótese instigante, talvez a mais controversa de toda a obra. E é baseada no fato de que as cartas de Fernando Pessoa para Sá-Carneiro se perderam, com exceção de meia dúzia. “Sei que esta afirmação pode invalidar todo meu trabalho como biografista, mas há indícios fortes de que Sá-Carneiro fosse apenas outro heterônimo de Fernando Pessoa”, diz Santa-Rita Repórter, deixando no ar o questionamento sobre a identidade do homem encontrado morto no hotel.


RESUMO

TÍTULO: Contando Sá-Carneirinhos - a história do menino que pôs a si mesmo para dormir

AUTOR: Santa-Rita Repórter

EDITORA: Nostalgia Futurista (Lisboa)

NÚMERO DE PÁGINAS: 126 p.

PREÇO: 10 euros.


Confira um trecho da obra:

“Muito já se foi dito sobre a relação entre meu avô e Mário de Sá-Carneiro. Conforme o que se lê na correspondência com Fernando Pessoa, parece haver aí muito ódio, como quando Sá-Carneiro diz que Santa-Rita, como editor, é pior que a morte. Com a intenção de lançar luz sobre a natureza do relacionamento entre os dois, revelo aqui um detalhe que pode vir a embasar futuros estudos. Trata-se do invólucro de uma bala de hortelã, que encontrei no baú de recordações do meu avô. No verso, há os seguintes apontamentos: ‘Finalmente aconteceu!!!’, ‘Ontem à noite, Sá-Carneiro, Café-Restaurant de La Régence’, ‘porém, mau-hálito’ e ‘próxima vez: como abordar o assunto?’”


***

Ps.: aviso importante, importantíssimo, para não haver mal-entendidos. O texto acima foi escrito por mim, Augusto Paim, e É UMA FICÇÃO, em forma de paródia de reportagem. Escrevi-o como exercício para uma reunião do grupo de estudos Leitura e Criação Literária, coordenado pelo professor Paulo Kralik no Mestrado em Teoria da PUCRS. O objetivo era criar uma ficção a partir de um personagem real. A atividade teve como ponto de partida a leitura de O senhor Juarroz, de Gonçalo Tavares.

terça-feira, 7 de junho de 2011

O dia em que eu (não) entrevistei Fernando Arrabal


Em abril eu passei muitas semanas agitado em função de uma entrevista com o dramaturgo espanhol Fernando Arrabal. Ele viria a Porto Alegre no dia 1º de maio para uma palestra no SESC. No período que antecedeu a entrevista, eu me preparei exaustivamente. Testemunha disso é meu colega do Mestrado em Teoria da Literatura da PUCRS, o diretor de teatro Daniel Fraga, que foi fundamental na pesquisa, dando dicas e indicando caminhos muito úteis. A ele dedico essa reportagem.

Na véspera da entrevista, eu estava em São Paulo, mas voltei a tempo de assistir à palestra no SESC. Trouxe na bagagem um gravador novo, que eu estrearia no dia seguinte, às 14h, hora do encontro com o Arrabal. Por esse e outros motivos, eu estava empolgado.

A entrevista, no entanto, foi um horror. E se isso foi muito frustrante no início, acabou se tornando um excelente mote para escrever o perfil do entrevistado. Você entende o porquê logo abaixo.

Antes disso: a reportagem foi publicada na edição 47 da Revista da Cultura. Se quiser ler diretamente lá, clique no link vermelho. Aqui publico uma versão estendida, já que em função do espaço o texto precisou ser editado.

Bom, aí vai o:

Perfil facebookiano de Fernando Arrabal

O dramaturgo espanhol parece não gostar de dar entrevistas, apesar de agendá-las. Eis o relato de uma entrevista que poderia ter sido.

por Augusto Paim

No dia 1º de maio, um domingo, Fernando Arrabal palestrou no Festival Palco Giratório, no SESC de Porto Alegre. Naquela noite, o pequeno homem de 78 anos e apenas 51 quilos trajava um paletó chinês preto de estampas com dragões dourados. Uma garrafa de vinho e uma taça semicheia jaziam na mesinha de apoio.

Com um discurso pausado e cheio de silêncios – performático! –, Arrabal discorreu sobre assuntos que volta e meia aparecem em suas falas públicas: sua amizade com grandes nomes da arte do século 20, como André Breton, Samuel Beckett, Picasso e Salvador Dalí; o por ele criado Teatro Pânico; sua adoração por Ruth Escobar; e a censura que sofreu do General Franco.

“Sou um pouquinho célebre porque me emborrachei um dia na televisão”, diz Arrabal a certa altura. Ele refere-se à caótica participação no programa de debates La Noche, da TVE espanhola, em 1989. Visivelmente embriagado, ele interrompia a todo momento a fala dos outros participantes e reclamava que não o deixavam falar. Além disso, cambaleou até cair e foi sentar-se na mesa no centro do cenário. Esse vídeo encontra-se no youtube [assista aqui], assim como outro, de agosto de 2009, que mostra a ida de Arrabal ao Programa do Jô. Lá ele não só cantou e dançou Catito, como também conduziu a própria entrevista, muitas vezes impedindo que Jô fizesse perguntas [assista aqui].

A relação de Arrabal com a imprensa é, no mínimo, confusa. A entrevista em Porto Alegre foi agendada para as 14h da segunda-feira seguinte à palestra no SESC. Arrabal não compareceu na hora marcada: enquanto ele sacava dinheiro em bancos pela cidade, pelo menos três entrevistas tiveram que ser canceladas ou adiadas. Quando finalmente chegou, uma hora depois do combinado, Arrabal sequer sabia se a conversa era para rádio, TV ou impresso. Reclamou de fome e sede e pediu salmão e suco de laranja para a assessora de imprensa.

A primeira pergunta levou um minuto para começar a ser respondida: Arrabal olhava para o repórter com ar de desdém, forçando-o a refazer a questão. A partir daí, passou a falar com longas pausas, ora usando as perguntas como gancho para falar dos assuntos que está acostumado a falar, ora respondendo porém fazendo para isso um grande volteio.

A entrevista foi um fracasso. Foram respondidas apenas algumas das nove perguntas que o repórter havia preparado. De modo que, como o diálogo não ocorreu, o único alento que resta é escrever o perfil de Fernando Arrabal buscando as informações em outros lugares – algo que já foi feito pelo jornalista estadunidense Gay Talese, que na década de 1960 escreveu um célebre perfil sobre Frank Sinatra sem entrevistar o cantor.

Eis abaixo uma lista das nove perguntas que estavam anotadas no bloquinho do repórter. Vão junto os respectivos comentários sobre a origem das questões e, eventualmente, as respostas.

1) Em começos de entrevista, é sempre bom deixar o entrevistado falar sobre um assunto que muito lhe interessa mas sobre o qual não costuma ser entrevistado. Fernando Arrabal fez uma incursão na área do biografismo quando escreveu Um escravo chamado Cervantes – um retrato do criador de Dom Quixote. O mote para o livro é a descoberta de um documento de 1569, onde consta que Miguel de Cervantes teria sido acusado de homossexualismo e por isso condenado, aos 21 anos de idade, a ter sua mão direita amputada – sentença que não se cumpriu porque Cervantes teria fugido para a Itália. No prefácio, Arrabal chama a esse trabalho de “exercício de admiração”. Certamente há pontos de identificação entre biografista e biografado que motivam o surgimento de um trabalho desse tipo. E motivam também a pergunta: “Por que esse ‘exercício de admiração’ por Cervantes? O que o fascina nele?” A esta pergunta, porém, Arrabal respondeu apenas que se interessava na peça de teatro de Cervantes chamada La Confusa. Nada mais.

2) A próxima questão questão está vinculada à anterior. Cervantes é mundialmente conhecido por Dom Quixote, mas considerava La Confusa sua melhor obra. Do mesmo modo, na palestra de domingo, Arrabal falava da sua predileção por Piquenique no front, sua primeira peça de teatro. A diferença entre o que o público lê em sua obra, e o modo como ele mesmo – o autor – enxerga seu trabalho pode ser resumida numa frase dita por Arrabal nessa palestra: “Eu já não sei o que escrevi”. Na segunda-feira, porém, a entrevista acabou antes que a pergunta “Qual é a sua lista de melhores obras suas?” fosse feita.

3) Arrabal se diz um azarado por sua relação com a política. Começou com seu pai, preso durante a Guerra Civil Espanhola e desaparecido após uma fuga. Depois o próprio Arrabal teve sua obra censurada pelo regime franquista – mereceu inclusive um processo, no qual é célebre a carta que Samuel Beckett escreveu em sua defesa. Uma das perguntas da malograda entrevista do dia 2 de maio em Porto Alegre seria: "O senhor já disse em entrevistas que é um azarado. No entanto, não é uma vida de sorte ter sido contemporâneo e, mais do que isso, amigo de gente como Beckett e Dalí?” Na resposta, Arrabal comentou apenas que, na época, nem Beckett nem Dalí podiam prever a dimensão que suas personalidades iriam mais tarde representar na arte do século 20.

4) Fernando Arrabal nasceu no dia 11 de agosto de 1932, em Melilla, cidade espanhola no Marrocos. Ainda criança foi morar em Madri e, em 1955, mudou-se para Paris, onde fez seus estudos e onde vive até hoje. “Sou da terra do desterro, da terra do teatro”, havia dito Arrabal no domingo. Então, cabe a pergunta: “Qual é a sua pátria?” A entrevista, no entanto, acabou antes dessa questão ser formulada. Devido ao insucesso evidente do entrevistador, não havia por que continuar.

5) Outra pergunta não realizada: “Cinema ou teatro?” Arrabal escreveu peças como O triciclo, O arquiteto e o imperador da Assíria e Cemitério de Automóveis, esta última encenada no Brasil, em 1968, pelo diretor Victor Garcia a pedido de Ruth Escobar: a montagem ocorreu numa oficina mecânica transformada em sala de espetáculos, com cadeiras giratórias e palco invadindo a área da plateia. Essa é a faceta teatral de Arrabal. Porém, o diretor gaúcho Diego Machado conta que descobriu Fando e Lis através do filme homônimo de Alejandro Jodorowsky, amigo de Arrabal. Do filme, Machado foi parar na peça e depois na decisão de montar o próprio espetáculo. “Fando e Lis foi uma vivência, muito mais que uma encenação”, conta ele. Mas mais do que pensar na adaptação das peças em filmes, há também o fato de o próprio Arrabal ter trabalhado com cinema. Seu trabalho mais conhecido é Viva la muerte (1971), considerado por muitos uma das películas mais violentas da história do cinema.

6) Uma pergunta teórica – “Na história do teatro, a importância passou do escritor para a encenação, a atuação e a montagem. Depois, para o diretor. Hoje, seria o público? Ou não há mais hierarquia?” – exige uma contextualização. No início da década de 1960, o crítico austro-húngaro Martin Esslin publicou um livro no qual tentava encontrar elementos em comum numa diversidade grande de autores contemporâneos. Estava criado assim o termo Teatro do Absurdo, que Esslin associava às obras de Samuel Beckett, Eugène Ionesco, Jean Genet e o próprio Arrabal. Um bom exemplo do que seria o Teatro do Absurdo está na montagem brasileira de Cemitério de Automóveis. Já aí havia uma quebra de paradigmas: o público deixa de ter um papel de espectador, passando a participar ativamente do espetáculo. Isso vai ser ampliado com propostas teatrais posteriores, como o Teatro do Oprimido do brasileiro Augusto Boal, onde praticamente já não há separação física nem hierarquia entre ator, diretor e público. Mas nem sempre foi assim. No início da história do teatro, o texto tinha uma importância muito maior que a encenação, como se o modo de representar pouco interferisse no conteúdo da obra. É só na segunda metade do século 18 que Diderot escreve Paradoxo sobre o ator, em que discorre sobre a importância da atuação no teatro. A partir daí, o conhecimento sobre o ato de encenar o texto vai se ampliando, e a figura do diretor vive seu período de auge como a peça central de um espetáculo de teatro. É quando chega o Teatro do Absurdo, onde tudo isso começa a cair por terra. Arrabal, porém, recusa-se a falar na existência de um antes e um depois na arte, recusa-se a diferenciar vanguarda de retaguarda. Em vez disso, cita o conceito matemático dos fractais para refutar qualquer ideia de evolução linear tanto na ciência quanto na literatura. “É surpreendente que se considere minha obra de vanguarda, e outros autores mais jovens que eu se considere que já não significam nada”, diz ele, para depois sublinhar: “Não se sabe. Não sabemos.”

7) No domingo, Arrabal começou a palestra dizendo: “o teatro está em crise, sempre esteve”. A crise, portanto, seria condição para o teatro existir. Depois, falou que “tem que sofrer para fazer teatro.” Arrabal muito sofreu na sua infância, por causa da ausência do pai e também por ter em casa uma mãe que se envergonhava da situação política do marido: quando este desapareceu, ela disse aos filhos que o pai já estava morto, embora não o soubesse de fato. A obra dramática de Arrabal traz a marca dessa experiência de vida, principalmente no que diz respeito às relações familiares. O que levanta a questão: “Arte é sofrimento? Arte pode ser felicidade?” Arrabal ou não entendeu, ou fugiu da resposta, pois iniciou uma digressão de dez minutos, que culminou na seguinte afirmação: “gostaria de dizer que há muitos paralelos entre o Montanha de Açúcar, o jovem que criou o Facebook, e minha própria vida”. Montanha de Açúcar é a tradução do sobrenome alemão de Mark Zuckerberg. O ponto de ligação seria o fato de ambos terem vencido concursos para superdotados, algo que Arrabal faz sempre questão de lembrar. “Me interessou muito o Facebook”, diz ele, contando que inclusive chegou a ter um perfil nessa e em outras redes sociais. Ao cabo de alguns meses, porém, descobriu, por intermédio de amigos, que existem vários outros usuários no Facebook usando seu nome. Páginas falsas, porém com fotos e informações verdadeiras sobre sua vida. “Não fazem isso por nenhuma ambição de dinheiro, nem para molestar”, diz Arrabal. Mesmo assim, decidiu sair.

8) No início da década de 1960, Arrabal criou com os amigos Roland Topor, Alejandro Jodorowski e Jackques Sternberg, entre outros intelectuais, o conceito de Teatro Pânico. Nele, a peça teatral passa a ser um ritual do qual o público não escapava impune: é bastante conhecido o episódio em que Arrabal e companhia levaram 500 quilos de carne para o palco. O Teatro Pânico foi inclusive teorizado em livro escrito por Jodorowski. Muito já se falou sobre isso, mas talvez haja outros pontos de abordagem, como por exemplo: “Qual é o Pânico do século 21? Que movimento – que pânico – precisaria o teatro hoje?”Arrabal replicou esta pergunta com outra pergunta – “você foi na minha palestra ontem?” – e depois respondeu curtamente que o teatro e a humanidade estão em crise.

9) Eis esta que talvez seja a única pergunta claramente respondida: “O senhor não gosta de ser visto como um provocador. Por quê? O que tem o senhor contra a provocação?” Segundo Arrabal, “o provocador é um cretino que imagina que há pessoas mais cretinas que ele que vão ficar deslumbradas ou surpreendidas por algo que ele possa fazer.”

Antes de encerrar: um perfil de Fernando Arrabal não pode se considerar completo, se mostrar apenas a relação dele com a imprensa. Quando se trata de autorizar a encenação de peças suas, Arrabal tem outro comportamento: ele não concede exclusividade a nenhuma companhia e também não cobra nada. Quer apenas que suas peças virem espetáculo, nada mais.

Em 2007, o ator e diretor gaúcho Alexander Kleine escreveu para Arrabal pedindo autorização para encenar O arquiteto e o imperador da Assíria. Segundo ele, Arrabal foi muito gentil. Respondeu ao email dizendo: “Que alegria, querido desconhecido. Conte com minha autorização. Amplexo arrabal de Paris.” Kleine, no entanto, explicou-lhe que seria necessário um documento assinado, devido a questões legais. A nova resposta de Arrabal: “Tem minha autorização firmada com sangue e esperma. Beijos.”

Kleine conta que se assustou com a resposta, mas depois a encarou positivamente: “Ele é um indignado com a mesquinhez do ser humano, as convenções podres, com o capitalismo, as guerras.” E faz questão de frisar: “Ele não tem papas na língua, fala o que pensa e sempre tem resposta pra tudo.”

Ou quase tudo.